Deitada
no sofá da sala, de pijama, assistindo TV depois de um
interminável dia de aulas, Joana curtia a paz, quando se fez noite. Tempestade se aproximando. Continuou se refestelando embora a sala fosse repetidamente iluminada por relâmpagos, seguidos por estrondos, e a chuva, agora, fosse torrencial. A natureza estava em fúria. Tenta se concentrar na novela. Sempre temeu os temporais.
Soa a campainha da porta freneticamente. Quem seria? Não
era o interfone, então deveria ser um morador do prédio. Levantou-se, abriu a porta, e deu com o Sr Márcio, seu vizinho de
porta, senhor idoso, meio mal-humorado. Geralmente,
vinha evitando puxar conversa com ele, pois desfilava sempre um interminável rosário de queixas. Para o seu“ Bom dia, tudo bem?” A resposta
era invariavelmente“ Não, nem sabe, estou com muitas dores, e hoje....” Naquele
dia foi incisivo:
"Rápido, saia rápido, que a água já vai invadir seu
apartamento". Sem entender bem, Joana olhou para baixo e viu que a
água, realmente, já adentrava o apartamento. Foi nos fundos, onde havia
uma área adjacente a cozinha e viu a água entrando com força. Já estava em dois palmos de altura. Desesperada,
sem saber o que fazer, pegou o celular, óculos, levantou alguns
poucos objetos, e de pijama mesmo desligou a chave de luz e foi com o Sr. Márcio para
o apartamento da Jacira no 1°andar, onde já se encontravam outros
moradores. Foram todos para as janelas do apartamento de frente e para as
escadas, que tinham janelas para a rua, que havia se tornado um rio; no
térreo, a água já estava, agora, na altura de meia janela.
Viram uma mulher pedindo socorro; o carro dela boiava e ela não conseguia
sair do mesmo. Gritos aflitos! Carlos, homem alto, musculoso dono de um lava-carros/garagem
a meia quadra do prédio, onde Joana
também guardava seu carro, aparece para ajudar, e consegue
retirá-la pela janela. Cena inesquecível. Medo, tristeza, compaixão, alívio. Mistura de
sentimentos. Nunca imaginara viver algo assim!
Eram três os moradores do
térreo: Joana, que vivia só, o Sr. Márcio, com a esposa e Katia, com
marido e dois filhos. O apartamento da
Kátia era o maior, deste andar, com dois quartos.
A sensação de todos era de desespero e impotência, vendo suas casas serem alagadas. O senhor Márcio, morador antigo do prédio, já havia vivido esta situação
antes; Joana nunca havia pensado ser protagonista de uma cena tão aterradora.
Quando visitou o imóvel para comprar havia lhe chamado a atenção uma escada no térreo, que
lhe pareceu sem sentido. Era em V invertido e não levava a lugar algum; a
escada para os demais dois andares era mais atrás, sem conexão com estes três degraus. Havia perguntado e lhe disseram haverem levantado para evitar alagamentos. Pareceu estranho, mas não lhe ocorreu que
pudesse entrar água, na proporção do ocorrido. O apartamento era o que estava buscando. Lindo, aconchegante, e com um mini pátio, nos fundos.
A chuva forte durou cerca de 1 hora, mas ficaram no 1.º andar por cerca de três horas, até a água baixar. Neste ínterim, Joana tentou ligar
para os filhos, mas só conseguiu falar com Pedro, o mais velho, que disse para ela ir
para a casa dele, o que, no momento, era impossível. Estavam ilhados. Ligou para o
namorado, que estava em viagem, para desabafar, contando que ao sair do apartamento a água já estava no meio da janela, 1 metro e meio. O que ele poderia fazer? Só a necessidade dela em desabafar, e dividir este momento horrível com alguém próximo como se isto fosse amenizar o que estava passando e sentindo.
Quando, finalmente, a água baixou, desceram para ver os estragos. Um horror!
A geladeira boiava no meio da
cozinha, gavetas alagadas. Lama e
entulho. Uma devastação com muitas perdas. Um cheiro horrível. Não era possível
examinar os estragos porque à luz de velas, só era possível ver que os móveis haviam sido muito estragados. Impossível ligar
o interruptor, pois poderia causar um curto-circuito.
Trocou de roupa, pegou documentos e dinheiro que, graças a Deus, guardava em gavetas
mais altas, caminhou até a avenida, com água, ainda pela canela, e após alguns minutos conseguiu chegar até um ponto de táxi, e foi para o apartamento do filho. A garagem, na mesma rua, onde guardava seu carro, também estava alagada e seu carro precisaria, com certeza, de reparos.
Uma sensação de abandono, perda, desespero. Sua casa, seu canto de lazer, e até seu carro, destroçados. Não sabia quais eletro domésticos ainda
estariam funcionando, e nem estimar as perdas reais. Estava abalada, havia
perdido sua noção de pertencimento, seu lugar de descanso, seu refúgio.
Ficou imaginando como deveriam se sentir os moradores ribeirinhos, que vivem esta
situação, rotineiramente, ou no temor que
possa ocorrer. Pensou, também, nos grandes desastres/calamidades, e no sentimento das
pessoas que de uma hora para a outra perdem suas casas e pertences.
Manhã do outro dia, após uma noite insone, com as cenas se repetindo em sua cabeça, como em um filme, chegam, ela e o filho ao apartamento.
A rua é um entulho de lixo, lama, restos,
esgoto. Fede muito! Há muita gente na rua, além de repórteres de TV. Todos questionando, comentando e confraternizando na dor. Havia histórias piores que a dela. Kátia, cujos móveis não eram embutidos, tombaram, quebrando objetos, causando muito estrago, e com perdas ainda mais significativas.
Joana nem sabe por onde começar. O apartamento está destruído. Os tabuões do
chão estão com buracos, os armários
embutidos soltando a cobertura de MDF, livros
inchados, sapatos que ficavam em
gavetões, embaixo da cama, destruídos. Gêneros perdidos. Havia comprado há pouco
duas poltronas, brancas, lindas de embalo, que jaziam tombadas, cobertas de barro.
Começam a tentar a
limpeza, levantando os eletrodomésticos e testando tudo. Adentram os repórteres,
com câmeras de TV, questionando as causas e solicitando
entrevista. Joana dá uma declaração:
"Esta tragédia foi
provocada por obras inacabadas na construção de um ducto, que devido a um
planejamento pobre e descuidado, bueiros entupidos, deixaram ruas vulneráveis,
e a enxurrada veio derrubando muros e estacas mal colocadas. "O que as
autoridades vão fazer agora? Como vão indenizar os moradores ?”
Após recolherem a roupa para
lavar, colocando muita coisa no lixo, chamaram uma equipe para limpar e
desinfetar tudo. Era humanamente impossível fazer todo o trabalho. Nem sabia por onde começar. Foi para um hotel
já que não era possível pernoitar ali.
Voltou para o apartamento após 3 dias, mas a sensação era horrível. A cada noite e a cada temporal, o medo de um
repeteco; além disto, minhocas e outros insetos saiam do piso danificado. O cheiro de esgoto insuportável.
. Não houve auxílio/ contato por parte do município ou medidas para prevenir nova tragédia , com a obra se arrastando. Um ano depois, o apartamento já reformado, voltou a ser alagado e Joana decidiu vender. Não queria arriscar uma próxima vez.
Situações traumáticas ficam como impressas, e conseguem fazer o sentimento original ser revivido.
Sem esconder o ocorrido, com o imóvel em perfeitas condições, conseguiu um preço justo. Não conseguia mais morar ali. As
recordações eram penosas. Iria recomeçar em outro lugar. Queria outras lembranças. Aquela casa já não
mais seria seu lar, sua segurança, seu refúgio.
A obra acabou sendo concluída, quase três anos depois, e acabaram-se os alagamentos. O município não se responsabilizou ou ressarciu os moradores pelo prejuízo e tiveram
que entrar na justiça para cobrar seus direitos. Ganharam a causa, danos
físicos e morais, mas os precatórios ainda não foram pagos, em sua totalidade.
NA: Crônica com base em fatos ocorridos.